Faz sol em Londres. Segundo o ChatGPT, são 1.675 horas ensolaradas por ano, na média, o que, além de ser mentira (porque esse número parece otimista demais), é um tanto muito menor do que aquele de São Paulo (2.000 horas) e do Rio de Janeiro (algo entre 2.200 e 3.500). Toda interação humana, portanto, começa com uma referência ao clima—agora positiva, ainda que cautelosa—, escancarando as necessidades fisiológicas básicas do ser humano por aqui, tal qual uma planta desesperada na janela.
Dito isso, como diria Caetano Veloso em uma das suas mais apropriadas canções (porque fala de Londres, escrita quando do seu exílio por aqui, mas também porque eu gosto muito dela): grama verde, olhos azuis, céu cinza, deus abençoe.
Sauna
A ascensão—lenta, gradual e segura—do calor me lembrou que, na edição passada, quando falei de tendências, faltou falar de um negócio que está em uma crescente aqui entre os jovens, que é o conceito da sauna ocasional. Sinto que vai apetecer meus ex-compatriotas de Pinheiros e região.
Fui a uma há algumas semanas (ainda no inverno, na verdade, porque é um programa muito interessante no clima ameno) e gostei. Ela ficava num rooftop, o que tornou a experiência ainda mais hipster e instagramável, ainda que eu não tenha tirado nenhuma foto. Um dos meus objetivos com a experiência era justamente ficar pelo menos meia hora sem expor o meu cérebro ao apodrecimento natural das redes sociais. A foto é do sítio online, portanto.

O comentário óbvio do leitor brasileiro, a julgar pelas reclamações abundantes nos últimos tempos nas supracitadas redes sociais, é que, no Brasil, todo dia é dia de sauna—eu sei. A minha resposta igualmente óbvia é que vivemos dias de crise climática, como todos os próximos dias das nossas vidas. Neste contexto, o uso da sauna é uma resposta provavelmente irônica ao chamado Paradoxo do Ar Condicionado, que eu não pretendo explicar no momento. Como diria outro exilado por aqui, o também tropicalista Gilberto Gil: tempo rei, transformai as velhas formas do viver.
Tour invisível
Por falar em outro assunto (para desalento da minha amiga Mariana, que gostaria que meus temas fossem todos conectados entre si), queria compartilhar que descobri, há algumas semanas, a organização Unseen Tours. Trata-se de uma ONG que faz um negócio muito legal por aqui, que é oferecer walking tours que são conduzidos por ex-moradores de rua da própria região coberta pelo passeio. Entre muitas virtudes, trata-se de uma forma de conhecer pedaços da cidade através de uma perspectiva muito diferente daquela que a gente já está meio cansado de ver no Instagram.
Nosso tour cobria a (turística) região de Westminster, mas, ao invés de falarmos repetidamente sobre o parlamento e o Big Ben, exploramos outros elementos da cidade. Elas incluíram, por exemplo, alguns dos viadutos—entre os quais os arcos sob os quais estão expostos murais homenageando William Blake—e pedaços dos parques próximos nem sempre muito valorizados, como os banheiros públicos. Também focamos em personagens menos óbvias associadas à região, como as enfermeiras Mary Seacole e Florence Nightingale (que merecem um tempinho da sua atenção no Google depois da leitura deste post).
Nossa guia era a Anne - uma senhora nos seus 50-60 anos que é também música e atriz. Durante o passeio, ela cantou e atuou. Especificamente, ela encenou um monólogo que contava sua própria história nas ruas da cidade. Custou 18 pounds (ou uma infinitude de reais, na cotação atual) por pessoa—o equivalente a duas taças de vinho da casa em um pub qualquer. Um bom investimento, portanto, inclusive porque o “vinho da casa” nos pubs costuma vir seguido de uma dipirona—esta, rara fora do Brasil graças a uma conspiração, neste caso real, das big pharma.
O Brasil infelizmente tem uma quantidade enorme de moradores/as de rua—eram mais 327 mil pessoas em 2024, de acordo com um estudo da UFMG. Tenho certeza que iniciativa similar teria muito potencial, turisticamente falando, especialmente em São Paulo e no Rio, que são muito ricas em histórias urbanas para além do Beco do Batman e do Parque Lage, respectivamente. Fica a sugestão despretensiosa do expatriado.
Memórias políticas
Terminei esses dias as memórias de duas das mais importantes e admiráveis mulheres do último século: a Angela Merkel e a Nancy Pelosi. Eu recomendo muito os dois livros (“Freedom” e “The Art of Power”, respectivamente)—inclusive porque é uma maneira prazerosa de dar tração a uma iniciativa já discutida nesta newsletter, que é a da leitura mais frequente de vozes femininas. Outro motivo pra recomendação é que a gente vive tempos políticos tenebrosos (como também já tratado aqui), então é sempre um alento ler ou escutar quem entende do assunto.
Na narrativa de Merkel, impressiona a honestidade moral e intelectual: é provavelmente o primeiro livro biográfico de um(a) político(a) que eu leio (e é o meu gênero favorito!) que inclui o reconhecimento sincero de erros, além de elevada sobriedade na celebração de acertos. É basicamente o Trump ao avesso (caso houvesse acertos na biografia do Donald). No caso de Pelosi isso não ocorre muito—a americana exalta seus feitos sem muito pudor—mas isso não os torna menos significativos e interessantes.
A leitura dos dois livros me fez pensar que nas crises que vivemos (como a do clima e da pobreza, mencionadas acima de forma finalmente conectada, Mari). Elas são resultados de um monte de coisa, mas acho que sobretudo da ausência de uma nova geração de lideranças capaz de traduzir os desafios do tempo em soluções compatíveis com a linguagem e a estética do presente. As abordagens de Pelosi e Merkel mudaram muitas realidades, mas não cabem mais. Sob o risco de encerrar essa edição numa nota soturna, noto que faz sol, mas parece que seguimos com dificuldades para escapar da sombra da desesperança.
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gostei muito, especialmente porque (aqui a amiga Mari talvez gostasse de saber) a minha vida carioca-porém-reclusa deste último ano reuniu e conectou, sem querer (e talvez por mais azar que sorte), todos os temas desse texto. Vivi a sauna empírica do asfalto, me deparei com o paradoxo do ar condicionado a cada vez que abri e fechei a janela da sala -- que dá para um amplo interior de quadra cheio de máquinas quentes e barulhentas -- escrevi longamente sobre o mundo que fez envelhecer merkel, pelosi e nossas avós, e planejei muitos passeios nesse Rio novo pra mim (até que enfim cheguei!). O bom é que agora chegou abril junto com fim do doutorado. Se a crise climática deixar, teremos temperaturas abaixo de 28ºC até outubro (será?), e eu vou finalmente fuçar os passeios guiados lado b - te conto!!
Provavelmente o que a Mari sentiu ao passar para o próximo tópico é o que acontece por aqui, queria ler muito mais sobre cada frase escrita por você!