O primeiro post
Alice Neel, o Barbican Centre, o déjà vu político-econômico brasileiro e o dia da mulher
Alice Neel
Parafraseando o Gilberto Gil na frase sobre o Rio de Janeiro que virou um clichê já batido—francamente—no Instagram, Londres continua cinza. A chegada cautelosa da primavera, no entanto, é animadora, e às vezes faz sol por mais de doze minutos num mesmo dia. E é assim, falando sobre o clima com um pouco de amargor marinado em esperança, que todo mundo em Londres começa uma conversa.
No penúltimo final de semana, fui à exposição de Alice Neel, uma pintora americana extraordinária, que eu ainda não conhecia. Retratista, ela se definia como uma colecionadora de almas—um termo que me pareceu poderoso para definir esse negócio de registrar o olhar alheio em óleo. O que mais chamou a minha atenção foi sua capacidade implacável de capturar o mais efêmero lampejo de drama—no seu sentido amplo—no olhar dos seus retratados. Parecia que, independentemente do estado de espírito do(s) objeto(s), o olhar contaria sempre uma história não-trivial. Pessoalmente, gosto quando um/a artista extrai profundidade da banalidade, esse elogio à nossa capacidade de criar emoção à partir do nada. Mais ou menos como no The Voice Kids.
A exposição estava no Barbican Centre, esse equipamento da cidade de Londres que merece dois parágrafos à parte. Trata-se de um complexo urbano (?) difícil de descrever, combinando três cinemas, um teatro, uma biblioteca, três restaurantes, um café, um conservatório e outras surpresas que você eventualmente descobre ao ficar inevitavelmente perdido no grande labirinto que é o lugar—tudo isso dentro de numa órbita de residências, numa região de Londres que, outrora decadente, hoje é das mais prestigiadas da cidade.
O Barbican foi inaugurado em 1982 pela própria rainha Elizabeth II (in memoriam (!)), o que representa um certo vanguardismo em termos de urbanismo que me pareceu bastante admirável. Sem viralatismo, sinto que faz muita falta, no Brasil, a integração da arquitetura com as cidades e o que há dentro delas (a vida e a sua parte que importa). Parece que nossa prioridade urbana sempre foi o automóvel, o que é uma pena, porque acho que é incontroverso dizer que tomar uma tacinha de vinho num jardim—como fizemos no Barbican—é melhor do que estar dentro de um HB20.
O déjà vu brasileiro
Falando do Brasil, parece que as discussões recentes do país têm envolvido coisas do tipo “calvo do Campari”, mentiras do ex-presidente e da sua esposa sobre mais outro escândalo de corrupção do governo que passou, e um pobre debate econômico por parte do governo atual. Tudo normal, portanto. Outra pena.
Sinto que evoluímos para o passado com a troca do governo. Isto é, superamos o pior dos nossos tempos—aqueles em que o presidente oferecia cloroquina para as emas do Planalto enquanto a população morria sem vacina—, mas retornamos a discussões econômicas parecidas com as que a gente vivia à época da maior recessão da nossa história, entre 2015 e 2016. Saímos no lucro, sim—mas celebremos com parcimônia.
Ninguém me perguntou, mas o governo atual até o momento tem uma quantidade mais ou menos equivalente de erros e acertos. Por um lado, é muito ruim que siga, por exemplo, atacando o Banco Central na chatíssima questão da taxa de juros—o que, aliás, representa um negacionismo científico muito lamentável, depois de todos os aprendizados da pandemia—e que, no geral, não adote uma postura mais adulta nos temas econômicos. A política externa também é um destaque negativo, com a agenda demasiadamente ideologizada do governo o impedindo de adotar uma posição menos ultrapassada na condenação da violação de direitos humanos em países como a Rússia e a Nicarágua.
Por outro lado, são animadores os planos de certos ministérios específicos, como o do Planejamento, da Simone Tebet; do Meio Ambiente, da admirável Marina Silva; e da Educação, da dupla Camilo Santana e Izolda Cela. Embora a condução econômica siga, em muitos sentidos, soberana para definir os rumos de países emergentes como o Brasil, é animador ver gente tecnicamente competente tocar áreas tão cruciais pro bem-estar de uma nação, como são estas. Acho que o segredo para ser brasileiro é esse, aliás: apostar de forma cautelosamente esperançosa em algumas frentes, a despeito das outras. No meio tempo, celebrar o carnaval. Acho que vale a pena, apesar de tudo.
O dia da mulher
No ensejo do Dia Internacional da Mulher que passou—cuja celebração no Brasil foi infelizmente ofuscada pelo deputado transfóbico cometendo prováveis crimes de transfobia—faço aqui uma homenagem despretensiosa às brasileiras a partir de uma menção a duas mulheres admiráveis que conheci recentemente (à distância) e da sugestão de que, caso já não o façam, acompanhem seu trabalho.
A primeira delas é a Tamara Klink, que tem duas leituras muito agradáveis sobre suas experiências na navegação e na poesia (gostei de Mil Milhas, seu primeiro livro, mais do que de Um Mundo em Poucas Linhas, o segundo). A segunda, numa seara parecida, é a Bárbara Veiga, que navegou por sete anos com o Greenpeace e a Sea Shepherd fazendo ativismo ambiental e relatou suas aventuras num livro muito interessante (Sete Anos em Sete Mares). Espero que gostem!
(A propósito, comecei, há dois ou três anos, a tentar ler pelo menos um livro escrito por mulheres para cada outro escrito por um homem, mas confesso que careço de sugestões para manter esse projeto vivo—fica o pedido agradecido, caso você tenha alguma)
O Tâmisa
Ainda no espírito aquático, a dica turística não solicitada dessa edição é o passeio de barco no Tâmisa, que eu fiz no último final de semana. Além de ser um meio de transporte real para certas partes da cidade—eu me transportei efetivamente de Embankment, que fica mais ou menos no centro, para Greenwich, no leste—é um traslado muito agradável, durante o qual é possível ver vários pontos turísticos importantes, além de congelar um pouco a sua bocheca dependendo do vento.
O Tâmisa é um rio muito emblemático para Londres, como todo mundo sabe. Além de ser a principal referência geográfica da cidade e parte importante de vários dos seus cartões postais, o rio, segundo fontes que eu não chequei, provê dois terços da água que é consumida por aqui—sobretudo aquela famosa tap water, que a gente adora pedir gratuitamente nos restaurantes. Gostei de saber, no espírito do frio do inverno, que alguns séculos atrás o Rei da Noruega deu um urso de polar de presente para Henrique III, rei britânico da época. Consta que o mamífero morava na Tower of London, e ocasionalmente nadava pelo Tâmisa. Se está na internet é porque é verdade.
Obrigado pela leitura!
Essa é a primeira edição dessa newsletter, cuja história eu contei aqui. Isso tem alguns significados. O primeiro é que o formato para as próximas pode mudar, então não se apegue muito a este aqui. O segundo é que seu comentário será particularmente bem-vindo—mesmo se ele vier no espírito do Nando, que escreveu este aqui depois de ler uma entrevista minha num site de notícias um tempo atrás.
Um verso de cortesia
Gênero misto, literário Um editorial por vez Aqui, o mesmo fuso-horário E mais três
Gabri
Estou girando em torno deste trecho: "Acho que o segredo para ser brasileiro é esse, aliás: apostar de forma cautelosamente esperançosa em algumas frentes, a despeito das outras. No meio tempo, celebrar o carnaval. Acho que vale a pena, apesar de tudo." Acho que vou ficar pensando sobre isso por uns dias. Brilhante, Gabri!