Emicida
Duas semanas atrás, fui ao show do Emicida, que tocou por aqui. Foi uma ótima experiência—não só porque se trata de um artista talentoso, na minha não-solicitada opinião, mas também porque o evento me propiciou a oportunidade de viver aquele pertencimento, mais ou menos gratuito, que vem de quando a gente reconhece na companhia do outro um pedaço de casa. Como esperado, afinal, a grande maioria da plateia era formada por brasileiros: gente radicada aqui que também se dá o trabalho de, ocasionalmente, sair pra comprar batata palha e farofa Yoki nos mercados latinos da cidade.
Como bom globalista, sou fundamentalmente contrário a ufanismos e nacionalismos no geral (o que é um pouco irônico dado o meu sobrenome, essa fonte permanente de indagações de estrangeiros em todo tipo de conversa). Aliás, eu me mudei para Londres, essa cidade global, justamente para tentar conhecer o mundo através de gente de outros cantos. No entanto, não vejo conflito em acomodar isso com um patriotismo moderado, aquele que vem do orgulho da própria origem, e que não tem nada a ver com o desprezo pela origem alheia. Se a vida é uma grande diáspora (não sei se é), parece razoável a gente querer eventualmente se localizar no caminho de quem veio de lugares parecidos. Aqui, duas semanas atrás, foi no Barbican Centre, onde o Emicida tocou.
(Vocês sabiam que Emicida surgiu pela junção de MC com Homicida? Eventualmente, o Leandro Roque de Oliveira—sim, o Emicida—também transformou o seu nome artístico em acrônimo: “Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte”. Se está na internet, deve ser verdade).
A coroação
Ainda no espírito do patriotismo, ou da falta dele, me senti compelido a gastar algumas linhas pra falar da coroação do novo rei, sobre a qual fui perguntado por alguns amigos na condição de correspondente brasileiro neste reino de clima miserável.
A verdade é que, a despeito de reconhecer o fato de ser um ativo turístico poderoso e de exercer poder político efetivo quase nulo hoje em dia, a existência da família real é um incômodo evidente—para mim e para boa parte de quem vive em Londres. Primeiro porque uma parcela significativa da população daqui (37%!) é formada por imigrantes. Segundo porque, não coincidentemente, trata-se de uma cidade descolada e progressista demais para acomodar de forma não irônica coisas do tipo carruagem e cetro de rubi. A hierarquização das pessoas em castas é, afinal, uma barreira óbvia para a nossa evolução enquanto sociedade, sobretudo quando premia variáveis não-meritocráticas na sua concepção—neste caso, o simples nascimento. Ademais, a figura em si—o nosso Charles Philip Arthur George (isso mesmo, quatro nomes e nenhum sobrenome, segundo a Wikipedia)—tem o carisma de uma impressora, e não parece ser um sujeito particularmente interessante. Foi feriado, pelo menos.*
*aqui há uma prática oficial muito oportuna, que é a de transformar a segunda-feira subsequente em feriado caso a data original do evento caia num final de semana.
Museu do Design
Aproveitei este dia livre extra propiciado pela (simples existência da) nossa majestade para visitar um lugar novo para a minha lista—o Museu do Design, que fica no riquíssimo bairro de Kensington. Não se trata do passeio mais imperdível do mundo, mas é uma experiência interessante para quem, assim como eu, gosta muito da estética como linguagem.
Tenho dois destaques sobre a minha experiência. O primeiro tem a ver com o reconhecimento de como a forma tem o poder de atribuir beleza à função—uma combinação que é, para mim, um elogio da humanidade à sua própria capacidade de endereçar a sua subsistência e os seus desejos ao mesmo tempo em que, potencialmente, faz arte no processo (e, portanto, atribui sentido a ele). Por aqui, para além da arte stricto sensu (dos museus, das galerias, dos teatros), sinto o mesmo na arquitetura e no urbanismo, o que transforma a cidade num espaço de engajamento estético permanente—um oportuno contraponto ao cinza opaco e monótono do céu e de cada tarde.
O segundo está ligado à importância do design dos produtos, bastante enfatizada na exposição permanente do museu. Não sou especialista, mas acho que trata-se de um elemento de consumo bastante caro à minha geração, cuja identidade está diretamente ligada à—e retroalimentada pela—sua própria representação nas redes sociais. Por isso, o design provavelmente nunca foi tão importante como variável de apelo nas nossas decisões de compra—seja numa roupa ou no leite de aveia. No limite, é também um mecanismo de promoção do pertencimento—aquele que a gente vive no show de um conterrâneo em outro país, ou que as pessoas supostamente sentem ao coroarem um novo líder. Do ponto de vista deste pertencimento em particular, Londres é uma cidade privilegiada. Afinal, o vanguardismo e a diversidade cultural da cidade dão espaço para o estabelecimento de múltiplas identidades possíveis ao mesmo tempo. Não por menos, faz muito sucesso no Instagram.
Essa incursão filosófica potencialmente exagerada acerca da estética como elemento de identificação social também me lembrou de um comentário marcante de um professor dos tempos de colégio, muitos anos atrás. Em resumo, ele havia elogiado a iniciativa da prefeitura de Belo Horizonte, à época, de promover a pintura da fachada das casas nas favelas da cidade, numa lógica que me abriu alguns horizontes mentais valiosos. Apesar de ser um investimento um pouco inócuo, sem capacidade de trazer transformação socioeconômica concreta para a comunidade, ele trazia algo igualmente importante, que tinha a ver, segundo o meu professor, com a sua auto-estima. A beleza não costuma ser um fim em si mesmo, mas muitas vezes ela é mesmo o capricho que faz a diferença.
A propósito
Fiquei bastante contente com o encorajamento que recebi de muita gente depois do meu primeiro post por aqui. Além de reforçar meu agradecimento, aproveito para reforçar que todo comentário será sempre bem-vindo; trata-se, afinal, de um projeto em formato de conversa, o que faz sempre mais sentido—inclusive psiquiátrico—quando há mais de uma pessoa envolvida.
Adorei! Sobre design e pertencimento: nesta semana fui no Museu da Casa Brasileira (fica num lugar arborizado no meio da Faria Lima - já foi?) e vi lá coisas que a gente só vê em casa de brasileiro mesmo (tipo filtro de barro ou aquele copinho americano de vidro que combina com um café bem preto e cheio de açúcar dentro). É interessante reconhecer o seu país nessas coisas, né?
Adorei! Larissa do Brasil vai acompanhar as aventuras do Brasil pelo mundo rs