Velejar
Resolvi fazer um curso de vela, porque afinal navegar é preciso, viver não é preciso. Achei que seria uma aventura interessante: uma forma de exercitar uma parte diferente do meu cérebro, considerando que a maior parte do que estudado nos últimos anos se concentra em temas relacionados ao meu trabalho. Também seria um pretexto oportuno para—além de explorar o universo náutico, que tem me interessado há um tempo—ver o sol, essa estrela lamentavelmente infrequente aqui por Londres.
Encontrei uma opção interessante em Prócida, essa ilha no sul da Itália que fica perto de Napoli, e embarquei por cinco dias no Sky Blazer—um barco simpático, porém tão quente que às vezes a ideia do naufrágio não parecia tão horrível assim.
Aprendi um monte de coisa nessa expedição. A primeira é que navegar é difícil—chocante, eu sei. Para além de todas as tarefas intrínsecas ao funcionamento do barco, tanto no âmbito da promoção do seu movimento (?) como da sua reles existência, todas as tarefas da vida adulta normal—digamos, cozinhar e lavar a louça—continuam existindo. Ser adulto é difícil, no fim das contas. Quem imaginou.
Há atividades para uma boa parte do dia, e o nível de conforto, ainda que o barco tenha um conjunto razoável de recursos, como era o caso, é sempre limitado pelo fato de que, bem, o alto-mar não é a nossa casa. Isso me fez confirmar, pra quem tinha dúvidas, que os navegadores dos séculos passados—que saíam por aí atrás de tempero e morriam infestados de piolho—eram de fato insanos. Também é um lembrete de que toda admiração por Tamara Klink, que veleja sozinha hoje em dia, é de fato merecida.

A segunda lição, de natureza física, é que, se tratando de vela, essencialmente não importa quase nada de onde vem o vento.
Confesso que embarquei nessa aventura com muito interesse, mas pouco conhecimento sobre como funciona um barco à vela, do ponto de vista motor. Fiquei muito estimulado ao aprender que, se tratando de movimento, tudo que importa é como a gente posiciona as velas da embarcação: a origem do vento em si é pouco relevante; a velocidade e a direção do barco serão as mesmas caso esse posicionamento seja bem feito, dada a forma como o pivô acoplado à vela principal funciona. Estou razoavelmente pronto pra dar essa palestrinha na mesa de um bar, utilizando dois palitos e um guardanapo, caso algum(a) leitor(a) tenha interesse.
Soa um bocado clichê, mas essa é uma metáfora interessante sobre a vida: o vento vem, a gente não controla de onde, mas a forma e a velocidade como a gente se move é fundamentalmente o resultado de como a gente se prepara para aproveitá-lo—e quase nada mais. Fica aí o registro filosófico que deixaria coaches como o Pablo Marçal no chinelo—inclusive porque, no meu caso, não vem associado a nenhum crime para além da minha própria ignorância.

Um outro aprendizado veio do meu instrutor do curso, o capitão Luca—um italiano ranzinza de uns 65 anos que, ao que tudo indica, era também alcoólatra, como manda o estereótipo de um bom marinheiro/pirata. Todos os dias no almoço, Luca se refrescava com uma —saborosa, na verdade—sangria de pêssego, a bebida típica de Prócida. Quando ancorávamos no meio da tarde nas ilhas da região (Ischia, Amalfi e Capri—todas muito belas, a propósito), Luca explorava as cervejas da resiliente geladeira do Sky Blazer. Depois do jantar, se estacionados em alguma marina, Luca terminava a noite com uma hidratação complementar à base de gin tônica, o seu coquetel preferido.
No primeiro dia, isso foi motivo de certa preocupação para mim e para a minha colega de curso, uma italiana muito simpática. A partir do segundo, concluímos que se tratava de parte inofensiva (para nós, pelo menos) da persona de um sujeito que, há várias décadas velejando pelos mares do planeta—pois Luca é um capitão muito experiente, descobrimos—escolheu na bebida o seu mecanismo de enfrentamento para os desafios da solidão que a profissão lhe trouxe. Felizmente, tal hábito não trouxe prejuízos para o relacionamento e a segurança da tripulação à bordo. Aliás, há quem diga que parte dela acabou na verdade adotando, com moderação, a tradição etílica do capitão Luca.

Uma última lição, que veio do Capitão Luca, tem a ver com o sol—esse tema recorrente na vida de qualquer expatriado latino em Londres.
No primeiro dia, quando planejávamos a nossa hidratação para a viagem (isto é, a compra das dezenas de garrafas de água que embarcariam conosco), Luca falou um negócio que para mim soou um bocado poético, embora ele tenha o dito despretensiosamente. Entre um gole e outro na sua sangria, ele falou que era ateu “mas o sol é o sol”.
Quando estamos velejando, às vezes subestimamos duas coisas: o impacto da radiação solar na nossa pele, dada a generosa brisa gerada pelo movimento do barco; e a nossa demanda por hidratação, dado que nosso metabolismo se comporta de maneira um pouco particular considerando a combinação do esforço físico com o movimento das ondas.
Para surpresa de ninguém, logo no segundo dia eu praticamente tive uma insolação, e absorvi enfim e humildemente o componente prático dessa lição. Como diria o Paulinho da Viola, que o meu avô adorava, afinal: não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar. Melhor ser navegado com filtro solar.
Biblioteca Britânica
De volta a Londres, resolvi aproveitar o restante das minhas férias para visitar pontos turísticos que eu sobreviveram intocados aos meus dois anos de exploração incessante desde que cheguei aqui. O melhor deles foi a Biblioteca Britânica, que conta com mais de 170,000,000 (cento e setenta milhões) de itens, incluindo mais de 13,500,000 (treze milhões e quinhentos mil) livros.
(Uma lei daqui estabelece que a instituição tem o dever legal de adquirir e preservar uma cópia de todo livro, jornal, revista ou mapa publicado dentro do Reino Unido—uma tarefa insana, por óbvio).

Como bom museu britânico, a Biblioteca se beneficiou intensamente da grande tradição cultural daqui, que é a da pilhagem. Para além de itens locais (como manuscritos dos Beatles), o acervo conta com praticamente quase todo grande item de relevância literária publicado ao redor do mundo muitos anos atrás—seja o Diamond Sutra (o livro mais antigo do mundo, publicado na China no ano de 868), a Bíblia de Gutenberg (publicada na Alemanha em 1450, e que todo mundo erroneamente acha que é o livro mais antigo do mundo), ou os cadernos do Leonardo da Vinci (“resgatados” pelos britânicos na Itália).

Dito isso, o item preferido da minha visita foi a Magna Carta, de 1215. Pra quem não conhece—ou conhecia pouco, como eu—trata-se, do documento que estabeleceu as bases para o que hoje a gente conhece como leis constitucionais.
Em resumo, o rei da época—“King John of England”—se tornou muito impopular dados vários fracassos militares (inclusive a perda da Normandia para a França) ao mesmo tempo em que pesava a mão nos impostos. Como resposta a isso, os barões do reino o pressionaram para, num “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”, ceder um pouco de poder em nome da promessa de estabilidade. Esse acordo incluía também coisas como a premissa de que ninguém (nem o rei) estaria acima da lei (c/c Elon Musk) e, notadamente, o importante direito aos homens livres do julgamento justo (c/c Alexandre de Moraes).
No entanto, embora o documento tenha inspirado muitos outros movimentos constitucionais nos séculos seguintes, incluindo a Constituição dos EUA e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, na época mesmo ele durou pouco. No mesmo ano, o Rei John conseguiu que o Papa Inocêncio III, seu aliado, anulasse o documento—um lembrete brutal de que o institucionalismo é muito legal, mas o autoritarismo está sempre à espreita. O infortúnio do Rei John foi que, no ano seguinte, ele morreu de disenteria. Um par de anos intenso pro finado monarca.
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Gábri
impressionante mesmo é a velocidade com que passaram esses dois anos. as velas deviam estar bem posicionadas.
Super atrasada nesta leitura, mas adorei!!