Quatro estações
Hoje faz um ano que cheguei em Londres. Ou, num espírito mais petulante, faz um ano que o vôo 246 da British Airways aterrissou no emblemático aeroporto de Heathrow, me trazendo para o Reino Unido com um status inédito para a minha (não mais tão jovem) aventura existencial—o de imigrante. Há um ano, meu patriótico sobrenome “Brasil” se tornou um negócio mais confuso ainda de explicar para as pessoas, que estão sempre convictas de que não entendi a pergunta que me fizeram durante um cadastro ou apresentação.
Não consigo dormir em avião. Por isso, durante aquele vôo, fiz o que qualquer outra pessoa madura faria, que foi passar parte das onze horas da sua duração amolando a passageira ao meu lado—no caso, uma generosa professora de ciências chamada Alex Lloyd. Ela, uma britânica que navegava ali pelos seus cinquenta e cinco anos e adorava o Brasil, veio muito gentilmente me contando bastidores da vida cotidiana na Britânia. Conversamos sobre os melhores supermercados para cada tipo de item doméstico, os seus museus gratuitos favoritos e, considerando meu desafio inicial de encontrar um lugar para morar, os melhores bairros para um jovem recém saído da hipsterlândia de Pinheiros. Uma conversa informativa e agradável, portanto—tenha ela gostado ou não.

No entanto, o destaque dessa interação foi a resposta dela quando eu perguntei qual seria seu melhor conselho para alguém como eu, que acabara de chegar. Alex disse, tal qual um oráculo de um filme de Samurai: Just do stuff, Gabriel. If someone invites you to do something, you just go. Segundo ela e muita gente, Londres é uma cidade vibrante demais para não ser aproveitada, e eu modestamente acho que segui esse mantra com diligência neste último ano. Na verdade, acho que trata-se de um conselho válido pra qualquer lugar—um carpe diem menos tatuável, mas ainda assim rico na sua virtude.
Dos pontos de vista social e cultural, explorei a vida por aqui num nível quase obsessivo, e sinto que fui recompensado por isso com aprendizados muito oportunos e conexões pessoais preciosas. Num ímpeto de gratitude, mandei uma mensagem para a Alex hoje mais cedo. Aparentemente, ela andou viajando muito—espero que tenha o feito espalhando sua sabedoria para outros passageiros vizinhos privilegiados.
Quando me instalei aqui, uma das minhas prioridades foi providenciar uma máquina da Nespresso. Nas opções de assinatura que a empresa tem, fazia muito sentido financeiro escolher aquela de dois anos de duração, porque eu gosto de pequenos luxos, mas gosto mais ainda de bons descontos. Isso significa que, desde que cheguei, na minha cabeça, minha ideia despretensiosa sempre foi ficar por aqui ao menos por esse tempo—pelo menos essa é a versão poética da minha teoria de que esse é um tempo razoável para se testar um novo estilo de vida, com novos estímulos e lugares. Não fico contando e não teria dificuldades em mudar esse plano, mas agora falta um ano só.

Piromania
Curiosamente, o cinco de novembro é celebrado com fogos de artifício aqui no Reino Unido. No entanto—e para a nossa surpresa—isso não tem a ver com o aniversário da minha chegada. Trata-se da “Guy Fawkes Night” (ou Bonfire Night), uma festividade iniciada em 1605 que envolve piromania literal, dado que, além do foguetório, é comemorada ao redor de múltiplas fogueiras pelo país.
Consta que o evento que deu origem a esse reveillón fora de época na verdade foi um não-evento: uma tentativa fracassada de um sujeito chamado Guy Fawkes de explodir o parlamento e, no processo, assassinar o Rei James I. Fawkes era membro do Gunpowder Plot—um movimento de ingleses católicos que, perseguidos religiosamente nos séculos anteriores, atuavam para pôr fim ao reinado protestante vigente. Não fiquei particularmente fascinado com a festividade, mas gostei da ironia de se celebrar uma não-explosão com fogueira e fogo de artifício—uma abordagem que harmoniza bem com o humor auto-depreciativo britânico.
(Aparentemente, a tradução para o português do movimento liderado por Fawkes seria a Conspiração da Pólvora, mas, infelizmente, isso tudo não tem, por óbvio, nada a ver com a origem da deliciosa palavra polvorosa—eu chequei)
Gaza
Por falar em perseguição religiosa, ninguém me pediu, mas eu tenho dois centavos para compartilhar sobre a horrenda situação envolvendo Israel e Palestina nas últimas semanas. Apesar de trabalhar num time de analistas de geopolítica, não me sinto confortável para falar de propostas para uma resolução da questão territorial, reconhecendo a complexidade histórica e étnico-religiosa do problema.
No entanto, tenho muita convicção ao dizer que a gente vive um momento pivotal com relação à nossa capacidade de prosperar juntos em sociedade. Estamos enfrentando o que muitos chamam de policrise—essa confluência de crises diversas que pioram umas às outras, sobre a qual comentei brevemente no último post—mas, apesar do desafio enorme que isso representa, parece que nossa capacidade de normalizar a barbárie segue implacável. Das múltiplas guerras à crise climática, seguimos obcecados com pseudo-soluções binárias, esses atalhos traiçoeiros que desconsideram que a nuance é um negócio que dá trabalho, mas que é essencial para separar a sofisticação humanista da simplicidade da alienação.
Como vítima de um atentado terrorista brutal, Israel tem o direito inalienável de se defender, é claro. Contudo, já ficou razoavelmente claro que seu (reativo e improvisado) projeto para Gaza—liderado por um ilegítimo primeiro-ministro—se aproxima perigosamente de algo que se parece muito com um genocídio. Apesar da limitada confiança que se deve ter nos números reportados pelas autoridades palestinas, a contagem dos corpos de inocentes, inclusive de crianças, é assimétrica e lamentável. Sobre isso, o insuspeito editorial do Financial Times nessa semana é uma leitura sóbria e oportuna, que eu recomendo com entusiasmo.
Para encerrar essa edição numa nota mais amena, compartilho uma foto de um concerto que assisti recentemente, daquela série clichê porém interessante chamada Candlelight Concerts. Foi na bonita igreja de St. Paul, o que reforçou meu apreço pelo uso não-ortodoxo—e, no limite, hipster—das moradas de Jesus Cristo para eventos não-religiosos, que é uma prática relativamente comum por aqui. A decepção anti-pirotécnica ficou por conta das velas, que eram de plástico. A arte às vezes é uma farsa, afinal.
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Muito bom, Gabriel!
Vai escrevendo...
Do lado de cá, dessa vez não tem como ignorar e não problematizar: É preciso estar atento e forte, estamos vivenciando aquilo que no futuro a história dirá: o genocídio do povo palestino!
No mais, Brasil desejo que você continue usufruindo pequenos luxos e tendo bons descontos.
Lembra que a vida é muito curta pra ser pequena!