Começou o outono, o que significa que ficou frio de repente e que agora temos quatro minutos a menos por dia de luz (sic) solar — caminhando vertiginosamente rumo ao tenebroso 21 de dezembro, o dia mais curto do ano. Resta aos residentes de Londres continuar bebendo, mas agora não mais nos parques e nas calçadas (apesar de pequenos grupos ainda em negação), e sim dentro dos pubs, cujos chãos vão ficando progressivamente mais grudentos. Afinal, nunca um pint de cerveja foi servido por aqui sem que um pouquinho do seu conteúdo fosse derramado—uma grande tradição da cultura local baseada no popular exagero etílico.
Royal Albert Hall
Neste espírito dos eventos indoors, nessa semana fui ao pomposo Royal Albert Hall para assistir Gilberto Passos Gil Moreira, o baiano formado em administração de empresas (!) que a gente conhece como Gilberto Gil. Como bom monumento pretensioso da britânia, o lugar é centenário e é associado à monarquia: foi inaugurado pela rainha Vitória—viúva do príncipe Albert—em 1871. Desde então, é o principal espaço de eventos de Londres. Durante as duas grandes guerras, o seu imponente domo foi pintado de preto para impedir que o prédio, muito simbólico para o país, se tornasse alvo de bombardeios. É o que diz a Wikipedia.
O ponto alto da experiência, para além do privilégio de ocupar um espaço de notória envergadura histórico-arquitetônica, foi poder ver pedaços da melhor parte do Brasil—a cultura e as pessoas—em destaque por aqui. Este é, afinal, um elemento central na agenda brasilianista que eu tenho cultivado desde que cheguei: o Brasil visto por dentro é muito vibrante, mas por fora ele é também muito rico—talvez por nostalgia, mas sobretudo por pertencimento (como já discutido nesta newsletter). Para mim, um elemento importante do sentimento de nação, esse tema tão importante atualmente, tem a ver com a sua própria auto-estima. No nosso caso, o Gilberto Gil, 81, tem um papel admirável na construção da nossa, e por isso, a ele, de todo o povo brasileiro: aquele abraço.
Resiliência
Na última semana, fui também ao Future Resilience Forum - um evento pretensioso que reúne líderes globais para discutir a geopolítica dos próximos vinte anos. Afinal, está muito fácil discutir a geopolítica da próxima semana. Foi uma experiência interessante, de toda forma. Não exatamente porque as discussões foram lideradas por figuras como líderes de estado e primeiro-ministros (como o PM Rishi Sunak, do Reino Unido, que abriu o evento), mas porque o tema importa—talvez mais do que nunca—e porque quem estava presente na audiência em geral era gente muito interessante.
Em dado momento, por exemplo, conheci um sujeito cujo cartão dizia que se tratava de um “Sir” — essa tradição aristocrática daqui que é tão ridícula quanto curiosa. Fiquei intrigado e, pesquisando no Google, descobri que, entre 2009 e 2015, o sujeito foi chefe do MI6, o serviço secreto britânico. Em termos mais poéticos, basicamente, isso significa que tomei uma tacinha de Chardonnay com o James Bond da vida real—um feito que eu certamente não esperava para uma segunda-feira.
O evento foi no majestoso Painted Hall, que é parte do Old Royal College de Greenwich, e que tem o teto mais impressionante que eu já vi.
Ninguém me perguntou, mas a geopolítica atual é um tabuleiro muito complicado. Por um lado, há a crescente rivalidade entre os EUA e a China, que traz incerteza no âmbito da segurança global, do comércio e de temas caros aos direitos humanos, inclusive a democracia. Do outro, as chamadas potências-médias tentando aproveitar nichos específicos—como o dos minerais críticos, dos semicondutores e da provisão energética—para exercer influência em temas reginais e globais. Trata-se, portanto, de uma mistura de polarização com fragmentação, que é uma combinação complicada considerando a emergência da chamada policrise—a combinação de crises que pioram umas às outras, incluindo a guerra na Ucrânia, a inflação generalizada, o conflito entre Israel e Hamas, e a mãe de todas elas, que é a crise climática.
Discutir isso tudo a partir de eventos assépticos é um pouco patético, mas nem por isso menos estimulante. Sinto que vivemos uma era que exaustivamente requer nosso engajamento em muitos temas, mas que também é uma era fortuita para o exercício da nossa curiosidade intelectual. Aprendi com meu avô que isso é uma fonte preciosa de crescimento (e, com a minha avó, que este crescimento só vale a pena caso direcionado às nossas próprias causas). Manter-se informado e engajado é um desafio para a minha tão desafiada geração—sobretudo porque, entre uma coisa e outra, a gente também quer tentar ser feliz. O problema é nosso.
ULEZ
Por falar em problema e em crise climática, terminei há algumas semanas o livro “Breathe - Tackling the Climate Emergency”, escrito pelo Sadiq Khan, que é o prefeito de Londres. Apesar de ser uma narrativa um pouco ingênua — dado que, afinal, é um livro escrito por um político em atividade— é uma leitura interessante para quem, assim como eu, quer entender o que cidades importantes da Europa estão fazendo com relação a este apocalipse tenebroso chamado climate change.
No caso de Londres, a medida mais interessante, central no relato do Sadiq, tem a ver com as chamadas ULEZ (Ultra Low Emissions Zones), que são áreas nas quais o trânsito de automóveis é restrito e sujeito ao pagamento de um pedágio. O programa foi implementado em 2019, e desde então tem sido alvo de controvérsias: afinal, nossas sociedades passaram os últimos cem anos nutrindo esse fetiche bizarro em torno de coisas do tipo “gasolina” e “Toyota Hilux”.
O fato é que a implementação das ULEZ, que foi baseada em uma fortuita combinação de evidências da ciência climática, do urbanismo e da ciência econômica, reduziu os níveis de poluição da cidade em taxas que vão de 6% a 46%, dependendo da região. Para além do problema do aquecimento global, aprendi há pouco tempo que poluição é um negócio muito subestimado: segundo a OMS, mata quase 7 milhões de pessoas prematuramente por ano no mundo.
Ainda na seara literária, e em uma nota parecida, uma outra recomendação não-solicitada que foi uma leitura mais ou menos recente é “Arrabalde: em busca da Amazônia”, do João Moreira Salles. É um ensaio elegante e profundo acerca da complexidade monumental—e a consequente elegância—da floresta amazônica. É um livro que explora as contradições do Brasil, como nação, na sua postura com relação a este patrimônio que é quase sempre visto de forma superficial ou romântica, quando se trata de um espaço de abundância que, na verdade, ainda carece de ser compreendido.
Os últimos oito anos foram os mais quentes da história do planeta. Falar sobre clima e meio ambiente deixou de ser um nicho intelectual ou de ativismo localizado. É verdadeiramente uma questão existencial, portanto um tema político e social que deveria ser prioritário. Aqui em Londres, o engajamento climático é notável—entre jovens, mas também no debate político e no ambiente corporativo, apesar dos cinismos e dos demais problemas associados a ele. Sinto que isso faz falta no Brasil. Temos, claro, outros desafios que também são prioritários. No entanto, estou convencido de que nenhum é tão grave quanto a crise climática—que é também uma oportunidade muito interessante para o país, na esteira de alguns dos nossos eternos potenciais. Para os próximos vinte anos (mas começando já), é uma crise que afetará nossa auto-estima, e que será definida, principalmente, pela nossa tão exercitada resiliência e pela nossa duvidosa capacidade de cuidar uns dos outros. Por enquanto, estamos falhando.
Para encerrar este longo post numa nota menos apocalíptica, divido abaixo uma foto do fim de tarde de verão no Tâmisa, um dos meus lugares preferidos por aqui. Aquele ali ao fundo apontando para o nada é o Shard, o prédio mais alto do Reino Unido.
Cheguei ao fim me perguntando quantos dos resilientes voavam em jatos particulares. Obrigada pelo ceticismo otimista. É preciso não se distrair com os tetos pra ver a sujeira do chão. No mais, esses versos aqui, bicho:
Ilha do Norte
Onde não sei se por sorte ou por castigo, dei de parar
Por algum tempo
Que afinal passou depressa, como tudo tem de passar
Hoje eu me sinto
Como se ter ido fosse necessário para voltar
Tanto mais vivo
De vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá
Nessa manhã de domingo, representando toda uma geração – millennials - que entre uma coisa e outra, quer ser feliz, fixei os seguintes assuntos: Gabriel Brasil assistiu show do Gil no pomposo Royal Albert Hall, tomou uma tacinha de Chardonnay com o James Bond (uau haha) na capela sistina britânica.