Bahia
Essa edição foi escrita em Londres, mas concebida na Bahia (GMT-3), aonde há algumas semanas eu fui tomar sol—como também fizeram boa parte dos brasileiros aqui radicados, de acordo com a minha amostra enviesada do Instagram. A Bahia—de onde Jorge Amado escreveu coisas do quilate de “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Agua”—é, afinal, a antítese de Londres na sua generosa exposição solar e provavelmente em todo o resto. É, portanto, um destino inteligente pro imigrante brasileiro desejoso de reequilibrar seus chakras vitamínicos de tempos em tempos.
Fiquei seis semanas no Brasil, o que significa que eu repeti mais ou menos quatrocentas vezes o mantra local: aquele dado pela sequência “crédito/aproxima/não precisa da minha via”, que repetimos o dia inteiro para exercer essa preciosa forma de cidadania, que é a do cartão de crédito. É impressionante como que, no país do Pix, ainda não superamos essa—mundana, sim, mas inconveniente— ineficiência. Como escreveu Jorge Amado: “assim é o mundo, povoado de céticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado.” Fica o desabafo deste internauta.
Cozinha britânica
Ainda sobre a Bahia ser a antítese do Reino Unido, uma expressão disso que cabe ser debatida nesta newsletter, em nome do interesse público, é a da culinária. Vez ou outra alguém me pergunta sobre a cultura gastronômica daqui, então incluí abaixo uma avaliação objetiva dos três principais pratos típicos dos britânicos:
Fish & Chips: em geral é gorduroso demais e saboroso de menos, ainda que isso soe contraditório. A justificativa é, eu suspeito, o peixe normalmente ser constituído do mesmo material com que se fazem os chinelos.
Sunday Roast: é essencialmente um prato de legumes, uma ou duas unidades de Yorkshire Pudding e uma carne—normalmente um rosbife cuja secura é compensada com o gravy, aquele molho que pode ser muito bom ou muito ruim dependendo do estabelecimento. O Yorkshire Pudding, por sua vez, é uma massinha gordurosa cuja função essencialmente é ser um repositório adicional do gravy.
Full English: esse aqui eu gosto, na verdade. O conceito é controverso, porque inclui uma abundância de proteínas e feijão num prato de café da manhã, mas é imbatível contra a ressaca. Também é um sonífero poderoso dependendo do horário.
No geral, o que resume a comida daqui é a mistura de abandono agrícola com fobia de tempero que faz os ingredientes serem ruins, e os preparos piores ainda. Londres, sendo multicultural como é, oferece opções internacionais de qualidade, claro, mas vez ou outra a gente ainda precisa se expor à cozinha local. Na festa de final de ano da empresa onde eu trabalho, que foi relativamente sofisticada e cujo buffet certamente não foi barato, foi servido isso aqui como prato principal:
Paranoia climática
Depois de um período de boa culinária e uma lamentável insolação na Bahia, perambulei entre São Paulo e Belo Horizonte, numa sequência de vôos que provavelmente constituiu a maior pegada de carbono num mês da minha existência. Para quem não sabe, voar é nossa maior fonte de emissões no nível individual, seguido de comer carne e andar de carro a combustão. (A situação é ainda pior caso você seja a Taylor Swift, que aparentemente emitiu 8.300 toneladas de CO2 com seu jatinho em 2022—1.800x a média global).
Para não viver essa paranoia sozinho, compartilho o gráfico abaixo, que também faz parte da minha cruzada de garantir que todo mundo esteja fazendo algo para combater as mudanças climáticas, nem que seja se sentir culpado por não estar fazendo nada.
2024
Mudando de assunto, o Brasil é provavelmente o único país onde o ano começa duas vezes: primeiro timidamente, de forma mandrake e pretensiosa, na virada do janeiro; e, finalmente, depois do Carnaval, quando a ressaca de Xeque Mate se mistura com coisas do tipo “epidemia de dengue” para nos lembrar das nossas responsabilidades perante o novo ano.
Ocorre que ninguém sabe direito como se calcula o Carnaval, esse réveillon móvel que é quando todo mundo calibra seus estoques de libertinagem e alcoolismo para depois compensar na quaresma comendo menos bife às sextas-feiras. Não é a toa, aliás, que “data do carnaval” é, a cada ano, uma das buscas mais realizadas por brasileiros no Google.
Somos, portanto, um país de calendário flexível na sua definição, o que harmoniza bem com a cultura geral do país, aquela calcada no improviso—no seu bom e no seu mau sentido. É o oposto do Reino Unido, onde a espontaneidade inexiste, e as pessoas agendam um brunch, sem ruborizar, com seis semanas de antecedência. É na esteira dessa flexibilidade que eu compartilho só agora, aos dezoito de fevereiro, o versinho de ano novo abaixo.
Ano novo
Janeiro, fevereiro e março
Tempo lento, penso, nasço
Contemplo atento - o tempo, o espaço
Tempo monumento, tempo em pedaço
Passa depressa, vida expressa
Atravessa abril, interessa maio
Tempo é sem rascunho
Intento sem ensaio
Tempo passa, sai de junho
Tempo escasso, esqueço, faço
Julho lento, aperta o passo
Agosto não: agosto demora
Vai embora, fica o cansaço
Setembro, outro tempo, outubro
Lembro, sem tempo, novembro
Dezembro é curto, tempo em compasso
Invento diário, o tempo: capricho necessário
Voam o vento, o tempo, os passos
Um evento em si de aniversário
Um templo em horas ou pedaços
Virou de novo o calendário
Gábri
01.01.2024
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Que demais! Seu humor já é britânico? E o nosso "confort food" é imbatível, n'est ce pas?
Adorei, Gabri! E não entendi qual é o vegetal do meio do prato da firma. Sobre os voos, eu nunca pego a água no copo descartável que eles oferecem para sentir que estou “fazendo alguma coisa”, mas esse gráfico acabou comigo😭