Na mitologia grega, Pegasus foi um cavalo majestoso, oriundo do pescoço da Medusa. Quando morto, foi transformado por Zeus em constelação como recompensa pelo seu heróico papel no combate à Quimera. Foi também na Grécia que o Cavalo de Tróia, recheado de guerreiros inimigos, se tornou famoso durante a invasão da cidade de mesma nome—uma estratégia tão inocente quanto efetiva por parte dos gregos. Em La Mancha, na Espanha, Rocinante foi o cavalo velho e fatalista do delirante Dom Quixote, atuando como espécie de alter-ego da realidade em meio aos moinhos de vento do intrépido porém ingênuo guerreiro. Na Roma Antiga, o garanhão Incitato virou senador, num ato debochado do Imperador Calígula que, a fim de demonstrar seu poder sem paralelos, resolveu que podia até mesmo nomear seu equino de confiança para o parlamento.
Esse panteão de equídeos ilustres ganhou, no Brasil da semana passada, um novo membro. O Cavalo Caramelo, ilhado nas águas vorazes do Rio Grande do Sul, era o cavalo certo na hora errada, no lugar errado. Mas qual é o lugar certo pra se estar quando o planeta inteiro convulsiona? Caramelo, o cavalo de gênero fluido—primeiro cavalo, depois égua, enfim cavalo—é o mais novo, embora certamente não vá ser o último—símbolo da nossa cruzada contra nós mesmos, que aprendemos a chamar de crise climática.
Caramelo foi homenageado na melhor leitura dos últimos dias, “O tédio e a esperança de um cavalo ilhado”, de Jerônimo Teixeira, na Piauí, que recomendo. Uma homenagem bonita para uma história que poderia ser apenas triste. Também virou meme nas redes sociais—inclusive, pasmem, no LinkedIn— e não escapou das tentativas da Primeira Dama Janja de transformar a tragédia em palco da sua—francamente, patética—agenda política pessoal que ninguém entende direito.
Em comum entre todas as histórias, o destaque à resiliência de Caramelo. Resiliência é uma palavra da moda: um reflexo do desafio que é existir em um mundo cheio de crises; reflexo também do hábito da minha geração de cultivar o seu pertencimento, em meio a tais crises, através de um vocabulário próprio e pretensioso, que inclui coisas como “problematização”, “letramento”, “esse lugar” e “empoderamento”. Resiliência está na moda porque é o que nos resta quando ignorar as crises não é uma opção, ao mesmo tempo em que às vezes é a única opção—como se estivéssemos em pé num telhado, a água ao redor.
É verdade que os brasileiros, inclusive seus cavalos, são conhecidos pela sua resiliência. Somos, afinal, o lugar onde se sufocam desafios com alegria, num carnaval permanente que, aos trancos e barrancos, chamamos de nação. Mas Caramelo virou herói como resultado do hábito que temos de transformar em heróis algumas vítimas simplesmente pela conquista da própria sobrevivência—esse raro luxo, hoje em dia. Mas é suficiente, enquanto nação, que nossos heróis sejam quase sempre assim? Certamente não precisamos de um cavaleiro obcecado com qualquer coisa virtuosa, inclusive moinhos de vento, como o parceiro de Rocinante, mas não seríamos capazes de produzir heróis mais alinhados aos desafios do tempo?
No caso da crise climática, parece que repetimos a receita. A culpa é das petroleiras, mas quem é que consome a gasolina produzida por elas (preferencialmente com subsídio do governo, que todo mundo adora)? A culpa é também da agropecuária, mas o churrasco é um símbolo nacional, como nos lembra periodicamente nosso próprio presidente—ele próprio um entusiasta da famigerada picanha. A culpa, claro, é dos políticos, mas quem é que os elege? Certamente não foram parar no parlamento como Incitato, pelas mãos de Calígula. Entre tantas outras crises que vivemos, o desafio do clima é o mais complexo, porque nele somos, ao mesmo tempo, vítimas e culpados—uma combinação que nos deixa em estado defensivo ao mesmo tempo que angustiados: a receita certa para a parálise.
Foi justamente em parálise que Caramelo esperou o seu demorado resgate, sem saber de onde ele viria—ou mesmo se ele viria. É um pouco também o que temos feito, mas com a diferença de que, ao contrário do cavalo, nós exacerbamos nosso próprio ilhamento a cada dia. A romantização do Caramelo é o que resta, aparentemente, ao jovem, como eu, que cultiva coisas como “resiliência”, “empoderamento” e “esse lugar” como tokens do seu ativismo problematizatório—essa ferramenta que é poderosa no engajamento virtual, mas nem tanto na vida real.
O cavalo caramelo provavelmente vai ter vida curta na memória do brasileiro—como normalmente são os memes e as mobilizações da internet. Não virou constelação, como Pegasus, nem sinônimo de ataque virtual, como o Cavalo de Tróia. Virou um símbolo passageiro da nossa atenção passageira a problemas permanentes, como o nosso desprezo pelo planeta.
Aprimorar nosso vocabulário à medida em que novos desafios se colocam parece razoável. Nada contra nossa nova obsessão pela resiliência—pelo contrário, que seja bem vinda, dado que necessária. Ocorre que uma conversa é sempre melhor quando vem junto da ação. No idioma do clima, o que fazemos tem dito pouco—quase como outro célebre equino, o cavalo do Chico Buarque, que só falava inglês.
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Talvez um dos textos mais leves e, ao mesmo tempo, realistas que li sobre essa loucura que estamos vivendo. É difícil falar sobre esse assunto sem um nó na garganta, sem indignação e sem culpa, mas o caramelinho (chamado aqui no sul de cavalo baio) se tornou um símbolo de resistência e de vulnerabilidade ao mesmo tempo que fez graça. Será que isso é a vida? E, já que falamos em baio, te convido a ouvir uma banda daqui de Caxias do Sul - a Cuscobayo (sim, cachorro caramelo em gauchês hahah, mas que já existia antes do meme). Ouve a Marasmo Barato. Beijo pra ti, Gabi.